Um novo ano para Fred

Ele já sabia no momento que desembarcou que odiaria aquela cidade. Toda aquela arquitetura falsa europeia, aquele povo falso europeu, aquelas atrações turísticas que não tinham nada de turísticas e muito menos de atrações.

Sentou à beira do rio por um instante. Não entendia a fixação da cidade por aquele rio. Era apenas um rio. Toda cidade tem rios. E nenhuma delas é especial pelo fato de ter um rio.

Acendeu um cigarro, olhou para o rio e simplesmente ficou ali. Imóvel. Apenas olhando.

A rua ainda carregava as decorações de Natal, enquanto a virada para um novo ano logo iria surgir. Ele não era o maior fã destas datas, fugia das festas e evitava o papo furado das pessoas discutindo sobre quem iria para qual praia.

Chamou um Uber e foi para o que chamaria de lar pelos próximos meses.

A pequena vila era bastante interessante. Não ficava longe do centro da cidade, mas mesmo assim mantinha um ar bucólico que só era reforçado pela quantidade de passarinhos em cima dos muros e das poucas palmeiras que circundavam o terreno. Um gato adormecido se banhava no sol.

Girou a chave na fechadura, entrou na casa mobiliada que lhe foi oferecida já no contrato de trabalho e largou a mochila sobre o sofá.

Na geladeira, um litro de água e duas caixas de latinhas de cerveja meticulosamente espalhadas uma ao lado da outra, em duas fileiras, o esperavam. No congelador, uma pilha de três lasanhas congeladas e uma forma de gelo.

Na porta, pendurado do lado de fora por um abridor de garrafas com um imã colado nas costas, letras femininas lhe davam boas vindas, com um número para que pudesse ligar.

A TV era a maior que já tivera. Na parede, um violão era o objeto de decoração. Parecia novo. Parecia ruim.

Subiu as escadas e encontrou o quarto, com uma cama grande e um guarda roupa que poderia guardar todas as roupas de três gerações de sua família.

No quarto ao lado, a escrivaninha demonstrava a função do aposento. Abriu a porta de metal e saiu para a varanda. Contou 10 pequena as casas no condomínio. Nunca tinha morado num lugar tão bom assim.

Desceu, apanhou uma cerveja e sentou no sofá. Antes que pudesse alcançar o controle remoto, sentiu o cheiro de maconha.

Saiu pela porta da frente e encontrou um sujeito tatuado, com algo que poderia ser o meio termo entre um moicano e um rastafári na cabeça. Ele usava uma regata branca e uma bermuda definitivamente muito mais curta do que seria aceitável. Aguava as plantas no jardim, baseado numa mão e regador na outra.

– você realmente tem um regador?
– oi?
– o regador. Nunca tinha visto alguém realmente usar um regador para molhar as plantas.
– eu acho bonito. Você deve ser o novo vizinho. O sindico falou de você.
– é mesmo? E o q ele falou?
– que você escreve. E que vai precisar de silencio.
– certo… E o que você falou?
– eu falei boa sorte.

 

Parada na esquina

Vi o amor da minha vida
parada na esquina
O cabelo penteado
o vestido preto bem passado
uma ruiva parada ao lado
e eu
apaixonado.

 

Vi o amor da minha vida
parada na esquina
esperando para atravessar
a rua
e eu sonhando em te ver
Nua.

 

Vi o amor da minha vida
parada na esquina
abanei e sorri
empolgado
Ela sorriu também
um tanto amarelado.

 

Vi o amor da minha vida
parada na esquina
e ela nem sabe
o quanto so(f)(r)ri.

Charles

O irmão de Andy veio passar alguns dias em sua casa. Andy adorava o irmão, também tinha muito apreço pela cunhada. Mas havia um problema. O pequeno Charles. O filho do casal era uma pacata criatura: calmo, comportado e inteligente. Até demais. E esse era o problema. Ele tinha um olhar misterioso que perseguia os olhos de Andy pela casa. Ele era um adorável garoto, orgulho de seus pais.  Nenhuma criança em sua idade poderia ser assim: tão perfeito.

Andy passou a andar ressabiado mesmo dentro de casa. Às vezes, enquanto preparava um lanche qualquer na cozinha, virava-se para apanhar algo e dava de cara com o garoto. Ele estava lá, estático, com um sorriso inocente no rosto olhando para Andy como quem está prestes a dizer alguma coisa. Mas ele nunca dizia nada.

O garoto sempre aparecia sem fazer ruído algum, com o sorriso angelical e os olhos brilhantes. Andy estranhava o fato de nunca ver a criança brincando, além do que as histórias de que ele nunca chorava e de que nunca se machucou ou ficou doente deixavam o menino ainda mais estranho. Algo estava errado. Andy não sabia o motivo, mas fazia o possível para evitar sua companhia, fugia de sua presença sempre que possível. Virou um estranho dentro da própria casa. Não conseguia mais relaxar. Até durante a noite, quando fechava os olhos, tinha a impressão de que Charles estava lá, nas sombras, o observando.

Seu irmão iria fazer um passeio romântico com a esposa e deixou Charles sobre os cuidados de Andy, certo dia. Andy levou o garoto para a frente da televisão e voltou ao quarto. Enquanto se afastava, via aqueles olhos fitando seu caminhar, com aquele sorriso adorável acompanhando cada movimento seu. Apressou o passo. Os batimentos estavam acelerados e o suor começava a escorrer pela têmpora esquerda. Parou no alto da escada e olhou para trás: nada. Tentou ler, não conseguiu. Tentou trabalhar, não conseguiu. Fez de tudo para relaxar e não conseguiu.

Teve a ideia: iria às compras. Enquanto estivesse fazendo compras, o pequeno Charles ficaria aos cuidados das recreadoras do supermercado. Se demorasse o suficiente, quando voltasse já encontraria seu irmão em casa. Seu desconforto já beirava a paranóia. Não conseguia mais relaxar, sempre olhando para os lados e temendo encontrar o sobrinho nos corredores. Foi à sala:

– Charles, vá calçar um tênis que nós vamos fazer compras.

Pegou a chave do carro em cima da estante, colocou a carteira e o celular no bolso e arrumou o cabelo em frente ao espelho. Ao se virar, deu de cara com o pequeno Charles, já sorrindo e pronto para sair. Precisou segurar o grito, preso na garganta. Abriu a porta e acelerou o passo. O garoto o seguia, sorrindo. Trancou a casa, entrou no carro, abriu a porta traseira para o menino e partiu.

Charles ficava sentado, coluna ereta, com o olhar perdido para fora da janela. Andy acompanhava cada movimento do garoto, olhando pelo retrovisor. Num cruzamento, quase bateu o carro, distraído. Desviou do outro veículo, assustado com o som da buzina, e seguiu viagem. Só então reparou a alta velocidade em que se encontrava. Olhou para o retrovisor novamente e o garoto não estava lá. Virou-se, assustado, e perdeu o controle do carro. Atingiu o canteiro central e a última coisa que viu, enquanto o veículo capotava, foi o rosto de Charles, na certeza de que gargalhava.

(texto escrito e publicado originalmente para o Duelo de Escritores)

(que como não existe mais, vou trazer alguns textos pra cá)

O vizinho

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Meu vizinho me olhou de lado
Meio desconfiado
Eu fiquei bolado
Preocupado
Ressabiado

Será que ele me ouve à noite
Quando estou roncando?
Será que ele me ouve à noite
Quando estou gozando?

Será que ele não gosta
Dos meus gatos?
Será que ele não gosta
Do barulho dos meus sapatos?

Me diga vizinho
Qual é o seu problema
Comigo

Se tudo o que eu queria
Era um vizinho
Amigo

(Ou uma vizinha gostosa
siliconada
Que trocasse de roupa com a janela aberta
De madrugada)

Rumo incerto

Vesti a jaqueta de couro e calcei as botas empoeiradas. Montei e girei a chave. O dedo pousou, receoso, sobre a ignição. Demorei alguns segundos até, com um suspiro dolorido, pressionar o botão que fez a máquina inteira vibrar embaixo de mim. O ronco assustou os passarinhos, assustou o cachorro, assustou os vizinhos. Assustou a dor e o medo.

Peguei a rua sem rumo, a caminho da rodovia. O cenário à minha volta começou a mudar. Prédios se transformaram em árvores, estacionamentos de shopping centers se transformaram em vastos arrozais e os motoboys foram substituídos por vacas, bois e cavalos. Com o vento batendo forte contra o rosto, respirei.

O câncer chegou de repente, como todo câncer chega. De zero a cem em menos tempo que gostaríamos de acreditar. O ronco da dor era tão alto quanto o do escapamento. Olhei para o ponteiro: estava devagar. Forcei mais o motor e ouvi o urro mecânico. A paisagem começou a passar mais rápido, o vento enrijeceu os braços, da mesma forma como aqueles últimos 18 meses haviam enrijecido minha alma.

Eu não tenho mais idade pra parar de fumar, filho. Isso é coisa pra jovem que ainda tem alguma chance na vida. Agora só me resta esperar e agradecer todo dia a Deus pela vida boa que a gente levou juntos. O sol estava se escondendo atrás das nuvens. Eu sabia que iria encontrar chuva mais à frente. Quando me aproximei o suficiente, encostei e esperei que ela chegasse até a mim.

Engole esse choro, rapaz. Homem de verdade não chora, não. Você não quer ser um homem forte e corajoso assim que nem o papai? A dor logo passa. Esse é o primeiro machucado, mas vão vir muitos. Você deve se lembrar de uma coisa, meu filho: a gente sempre vai cair. O que importa é que a gente sempre se levante e tente de novo. Não adianta quantos machucados a gente fizer, de nada adianta ficar chorando. Mas eu chorava. Sentado na moto, de braços abertos, capacete no colo e rosto recebendo as gostas da chuva que já havia chegado, eu chorava.

A primeira moto do meu pai era uma Intruder. Igualzinha aquelas dos filmes.  E eu falava pra ele, sempre que ele chegava em casa e colocava o capacete na minha cabeça: um dia eu vou ter uma moto também, bem maior que essa, eu vou ter uma Harley Davidson!, eu dizia colocando o capacete.

Coloquei o capacete e olhei o emblema no tanque. PHD. Você nunca andou nela, pai. E nunca vai andar. E ela é tão linda, tão forte. Ela não chora, diferente de mim. Ela é que nem você pai. Ela é forte e vai onde ela bem entender. Ela também tem seus pontos fracos, como você tem os seus. Ela também bebe demais. Ela também tem um problema antigo com a fumaça. Mas ela pode até virar passado, pai, mas você é que é insubstituível.

Retornei para casa. Ela retornou pra casa.

Mas você, pai, você não retornou pra casa.

 

 

 

 

(texto publicado originalmente no Duelo de Escritores)

O Flerte de Fred Bukowski

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O tema desta rodada do Duelo de Escritores é “flerte“.

Estava eu aqui, escrevendo a respeito, quando lembrei automaticamente do Fred, o cara que mais entende de flerte. Não quis reaproveitar um conto antigo para o Duelo, quis escrever um novo. Por isso, aqui no blog eu coloco um flash back, uma lembrança dos contos antigos. Um dos que melhor se encaixa no tema é justamente a parte 2 de Quero ser Bukowski:

PARTE    II

   Eu e a garota estávamos dentro da sala, eu tentando ler, e ela puxando papo. Eu estava pensando “Porra, ela gosta de Bukowski, só pode ser machorra.”

–    Ei, você gosta de pica? – resolvi perguntar e tirar a dúvida.

–    Da sua ou em geral? – ela realmente lia Bukowski.

–    Em geral.

–    Gosto sim… – falou olhando para o meio de minhas pernas.

Me arrumei na cadeira pra cortar o barato dela.

–    Olha só – disse eu – uma amiga minha tá grávida.

–    O filho é teu?

–    Não.

–    Como pode ter certeza?

–    Não como ela faz uma cara. – na verdade, eu não comia ninguém fazia uma cara…

–    Só, então que tem demais?

–    Foi exatamente o que perguntei pra ela… Mas porra, é um filho. Cabreiro.

–    Quantos anos ela tem? – me perguntou.

–    Sei lá, mais de vinte com certeza, mas não sei o número exato.

–    Então que se foda. Já tá na idade de procriar.

Era a primeira vez que eu via uma mulher falar a palavra “procriar” pra falar sobre seres humanos. Achei legal.

–    E você? Quantos anos tem? – perguntei pra ela.

–    O suficiente para procriar. – ela respondeu com um sorriso sacana nos lábios.

–    Tá afim de tentar um pouco então?

–    Tentar o caralho! Se tu gozar dentro, arranco tuas bolas!

Parecia justo pra mim. Terminei o livro, arrumei minhas coisas e a segui até seu carro. Transamos no banco de trás, ouvíamos os estudantes passando pelos lados do carro. Um berrou umas besteiras. Mandei ele tomar no cu e continuei o trabalho. Foi rápido, e devo admitir que não teve muita graça. Só sei que não gozei dentro, e continuei com minhas bolas.

Isso sim era uma boa notícia.

 

 

 

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O sexo de Bukowski

A pequena de Doutor Arnaldo

O dia que conheci Charles Bukowski

Pau rosa

 

Gerúndio

– Boa tarde, senhor Valdir. Eu poderia estar conversando com o senhor um momentinho?

Assim começava o dia de Valquíria. Com a voz irritantemente estridente atingindo com força os tímpanos do cidadão ao lado do telefone. Ao mesmo tempo em que ele, invariavelmente, contorcia os músculos do rosto em clara indigestão sonora, ela erguia o canto dos lábios num sorriso sacana.

– Eu gostaria de estar oferecendo ao senhor um novo produto de uma nova promoção que gostaríamos que o senhor estivesse vindo a fazer parte.

Valquíria é uma mulher inteligente, sabe há anos que o gerúndio não se faz necessário. Mas sabe, também, que ele é terrivelmente odiado. E é por isso mesmo que insiste em usar cada sílaba de forma tônica, em um destaque mortal. A resposta, normalmente, é a mesma:

– Não, obrigado. Não tenho interesse.

– Mas senhor, o senhor ainda nem descobriu do que se trata este produto que nós gostaríamos que o senhor estivesse adquirindo. E se for – e olha que é! – uma super promoção irresistível, que o senhor com certeza estaria tendo interesse em adquirir? Imagina só a oportunidade que o senhor estaria deixando de aproveitar, não é mesmo?

– Mesmo assim, não tenho interesse. Tenha um bom dia.

– Mas que falta de educação, meu senhor. Já me despachando assim, dessa forma rude? O senhor nem deixou que eu estivesse lhe dizendo o meu nome e já vai me enxotando que nem cachorro magro?

– Tá bom, me desculpe. Como é seu nome?

– Walquíria Elizabeth das Graças de Jesus. Walquíria com dábliu, Elizabeth com zê e tê agá, e Graças de Jesus normal mesmo, né? Porque nas Graças de Jesus a gente não pode mexer não.

Repetia a cada ligação a mesma frase, puxando uma risada anasalada ao final da explicação. Valquíria de Albuquerque Ferreira e Braga não tinha o nome com “dábliu” e muito menos as Graças de Jesus junto a si, cética que é. Mas isso também era uma ótima ferramenta para manipular o pobre senhor Valdir, ou quem quer que fosse, ao outro lado da linha. Valquíria era sádica, explorava o sofrimento do homem que, angustiado, já deveria estar olhando para o relógio, na outra ponta da ligação.

– Desculpe, Dona Walquíria, mas…

– Walquíria Elizabeth, por favor. Com dábliu e zê, tê e agá, lembra?

– Isso, isso. Dona Walquíria Elizabeth, me desculpe mas não tenho interesse em comprar nada não.

– Mas meu senhor! E quem falou em comprar? Não lhe disse agorinha mesmo que nós gostaríamos é que o senhor estivesse vindo a fazer parte de um seletíssimo grupo de clientes que já estão fazendo bom uso de nosso produto?

– Sim, mas…

– Então, meu senhor, tudo o que o senhor precisa fazer, é confirmar alguns dados para nós estarmos fazendo o seu cadastro junto ao nosso sistema, e o senhor já poderá estar desfrutando de nossos benefícios. O nome do senhor é Valdir Souza da Silva?

– Não, não. É Valdir de Souza Silva.

– Ah, sim. O senhor aguarde um minutinho que eu vou estar atualizando o nosso sistema.

No momento em que a música – uma bossa nova irritantemente calma – começava a tocar, Valquíria afastava o fone do rosto, se reclinava na cadeira e acendia um cigarro. A cada ligação, o mesmo processo. Pegava a caneta tinteiro e marcava suas anotações no formulário de pesquisa que tinha sobre a mesa. Nome, idade, escolaridade, número de filhos, profissão, tempo de permanência na ligação telefônica, grau de irritabilidade. Todos os dados de Valdir descritos detalhadamente no formulário que havia projetado para sua tese de doutorado.

– Senhor Valdir, nosso sistema se encontra temporariamente fora do ar. O senhor poderia estar aguardando mais uns minutinhos na linha enquanto estaremos restabelecendo a nossa conexão com o servidor?

– Olha, não tenho interesse não. Já estou atrasado, pois quando você ligou, eu estava de saída.

– Mas senhor, se o senhor vir a estar desligando o telefone, não vai poder estar vindo a fazer parte do nosso seletíssimo grupo de clientes.

– Não tenho interesse, passar bem.

Valquíria colocava, após cada ligação, o telefone de volta no gancho. Desligava o gravador e anotava os dados. Em cima da mesa, pilhas diversas de papéis demonstravam os resultados de sua pesquisa sobre o grau de irritabilidade dos moradores de uma grande cidade ao telefone. Anotava mais um X no formulário enquanto sorria, ao perceber que mesmo após quatro meses de dezenas de ligações diárias, nenhum entrevistado sequer perguntara qual era o produto em questão.


***publicado originalmente no projeto literário Duelo de Escritores. O tema da rodada pede para contarmos as histórias dela, a Valquíria.

Análises

– Você tá com uma cara de preocupada.

– Nada não.

– Deixa eu adivinhar: tens namorado?

– Você é bom nisso. É psicólogo?

– Quase.

– Sou casada.

– E o marido, por que não veio junto?

– Digamos que ele não pode sair.

– Doente?

– Preso.

– Por muito tempo?

– 14 anos.

– Vou evitar perguntar o motivo.

– Faz bem.

– Mas então você tá praticamente solteira.

– Como assim?

– Tens o que? 26 anos?

– 28.

– Quando ele sair você vai estar com 42.

– É…

– Então. Você vai esperar esse tempo todo?

– Vou sim, ele pode sair a cada três meses para passar um final de semana em casa.

– Mas hoje você saiu de casa mesmo assim.

– E existe algum problema em sair de casa?

– Quando se sai de casa com vontade de beijar na boca, sim.

– E quem disse que eu saí de casa com vontade de beijar na boca?

– Eu disse. E foi você quem disse que eu sou bom nisso.

– É… é verdade.

– E então?

– Então o quê?

– Saiu ou não saiu de casa com vontade de beijar na boca?

– É, saí sim.

– Então por que não mata essa vontade logo?

– Tenho que me segurar.

– Mas você não vai.

– É, eu não vou.

Beijaram-se demoradamente transformando todas aquelas análises, perguntas e confirmações em saliva. Nunca mais se viram e nem sequer perguntaram seus nomes. Mas ele sabia as certezas sobre todas as dúvidas que ela nem precisou mencionar.

O Príncipe Encantado (ou não)

(por Fábio Ricardo – 30/10/08)

Ele tinha uma queda por menininhas, sempre teve. Nada de mulheres feitas, bem sucedidas e seguras de si. Sempre olhou para as mais novas, universitárias ou recém-saídas da faculdade. Aquele tipo meio deslumbrado, que ainda está à procura do príncipe encantado. De certa forma elas eram mais fáceis de satisfazer. Na cama, por não terem uma experiência tão grande assim, e se empolgarem com qualquer nova perversão sugerida. Fora dela, por se derreterem com qualquer buquê de flores, jantar no japonês ou palavra bonita sussurrada no ouvido.

Mas um dia ele a conheceu. Quase dez anos mais velha, empresária carioca, bem sucedida e numa vibe completamente diferente daquela pela qual ele já tinha percorrido. E o mais impressionante: ela falava de sexo. Não falava como todas falam, cheias de pudores, desvios de fala ou rubores faciais. Falava de um jeito todo seu, todo seguro de si, todo direto. Não inventava apelidos para seus sexos e não tinha vergonha alguma em dizer que preferia nesta ou naquela posição.

Ele, que sempre fora tão seguro de si, sentia-se uma criança diante dela. Sempre foi o comedor, o maioral. Pegava a menina em casa, da casa pra sinuca, da sinuca pro barzinho, do barzinho pro motel. Pagava sem perguntar o preço e a deixava na porta de casa, com um beijo de boa noite. Menininha nenhuma resistia. No dia seguinte era MSN, Orkut, mensagem de celular, aquela garantida básica pra não deixar escapar.

Daí chega ela. Tão segura, tão dona de seu próprio nariz. Escritora, cineasta, tudo aquilo que ele dizia ser, e que nunca tinha chegado sequer aos pés dela. Ele, que fingia ser o príncipe encantado, caiu do cavalo branco. Não tinha nenhuma arma pra usar contra ela. A conversa de sempre não funcionava, ela já tinha ouvido milhares de vezes. O jeitão de bom moço era piada, ela escolhia a dedo. O papo intelectual era vencido na primeira meia hora, ela era mais versada que qualquer das outras vítimas.

Mas mesmo assim ela jogou um charme. Ele deu o bote e ela manipulou ele direitinho. Ele investiu e ela administrou o resultado. Ele ofereceu carona, e ela – mesmo estando de carro – aceitou. Ele, para mostrar que estava no controle, carregou as algemas, a espuma pra banheira e a venda para os olhos. Ela tirou a roupa de forma magistral. Se não se garantisse, podia ter se assustado com aquela mulher na sua cama. Ela, que não tinha medo de berrar, de dizer com todas as palavras o que queria que ele fizesse. Ela, que pulava sobre ele, girava o corpo e arqueava as costas como nenhuma outra. Ela, que percebeu que ele queria mandar, queria o poder.

Soltou as rédeas e foi submissa. Gozou uma, duas vezes, gritou sem pudor. Depois deitou-se em seu peito, toda donzela, em busca de um afago. Com as mãos entre seus cabelos suados, ele cresceu novamente. Ela o dominava por completo, era muito mais do que ele em qualquer lugar. Mas ali ele ainda tinha seu cavalo branco e a armadura de prata do príncipe encantado. Homem qualquer no mundo consegue reparar no brilho mágico dos olhos de uma mulher bem comida.

Ciclo

Conheceu-a sob a condição de não beijá-la.
Beijou sob a condição de que mantivesse segredo.
Manteve sob a condição de que a levasse para a cama.
Levou-a sob a condição de satisfazê-la desde a primeira vez.
Satisfez sob a condição de chamá-la para sair mais vezes.
Chamou sob a condição de não se apaixonar.
Apaixonou-se sob a condição de namorar.
Namorou sob a condição de não trair.
Foi fiel sob a condição de ser feliz.
Foi feliz sob a condição de que fosse eterno.
Eternizou-a sob a condição de cantá-la.
Cantou sob a condição de se entregar.
Entregou-se sob a condição de não sofrer.
Sofreu sob a condição de não se ferir.
Feriu-se sob a condição de esquecê-la.
Esqueceu sob a condição de trocá-la por outra.
Trocou sob a condição de não se apaixonar.
Apaixonou-se sob a condição de não começar tudo de novo.
Começou sob a condição de não cometer os mesmos erros.
Cometeu.

(texto originalmente postado no Duelo de Escritores, sobre o tem “condição”. Visite o site, confira os outros textos e vocte no seu preferido. É até dia 16 de outubro)