Mais um

– Aí Jandir, mais um. Aqui no 66.
– Porra cara, de novo? A gente mal chegou aqui.
– Eu sei, mas não posso fazer nada. Manda o pessoal aqui logo, que tá espalhando na pista e isso aqui vai ficar liso pacas.
– Beleza Serginho. ‘Tamo indo aí. Segura as pontas.

Jandir desliga o telefone, soa o alarme e veste a parte de cima do macacão, que estava pendurada pela cintura. Toma um gole do café, já frio, e segue caminho até o quilômetro 66 da BR 470, em direção ao litoral. Sexta-feira, trânsito intenso, uma ultrapassagem mal-sucedida e dois carros se chocam com brutalidade. O mesmo cenário, a mesma situação, a mesma correria para salvar vidas perdidas da forma mais tola e insignificante possível.

– Essa foi feia mesmo. Sobrou alguém?
– Nada. Nada de nada.
– Merda. Documento, alguma coisa?
– Já repassei tudo. Família indo pra praia, caminhoneiro com carga acima do limite, não dá tempo de frear, a ondulação na pista esconde o outro vindo do outro lado. A mesma história de sempre.
– Merda. Dá de perder a conta.
– Não, não dá. Fica marcado na cabeça. Esse aqui foi o 18º de hoje. Tem noção disso? É muita coisa.
– É… e no final do mês, 18 é quase nada…
– Nem fala. Deixa eu ir ali arrumar a papelada.

Papelada. Duas famílias se transformam, com a velocidade de uma colisão, em números. Estatísticas de um mundo violento. Estatísticas da burocracia que atrasa e apaga vidas. Números que se esquecem, que perdem o significado, que se amarelam junto com as folhas envelhecidas do jornal. Número que não significam nada. Vidas que passam a significar ainda menos.

*Conto publicado inicialmente no blog Duelo de Escritores, cujo tema da rodada era Duplicação da BR 470.

1 Comments

  1. Que legal!
    Mas é uma característica bem marcante mesmo, não tem como não perceber.

    Viu, gostaria de pedir uma ajuda. Estou escrevendo uma história que pretendo publicar como livro. Publiquei 4 partes da história (basicamente o começo do livro) no Expressionando e gostaria de pedir que você desse uma lida e já que parece ter mais experiência com escrita do que eu, desse opiniões sobre o que pode estar funcionando e o que não.
    A história se chama “Slider, Deslizador de Dimensões”.

    Valeu! Um Abraço!

    Fábio Ricardo disse:

    Muito obrigado pela leitura crítica dos meus textos!!
    Você reparou algo que acho que ngm tinha chegado a essa conclusão ainda, que é o fato de todas as histórias serem cíclicas, do personagem nunca conseguir fugir de suas origens, do que ele é na realidade.

    Fiquei muito contente com esse seu comentário. Um abraço!

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