Rumo incerto

Vesti a jaqueta de couro e calcei as botas empoeiradas. Montei e girei a chave. O dedo pousou, receoso, sobre a ignição. Demorei alguns segundos até, com um suspiro dolorido, pressionar o botão que fez a máquina inteira vibrar embaixo de mim. O ronco assustou os passarinhos, assustou o cachorro, assustou os vizinhos. Assustou a dor e o medo.

Peguei a rua sem rumo, a caminho da rodovia. O cenário à minha volta começou a mudar. Prédios se transformaram em árvores, estacionamentos de shopping centers se transformaram em vastos arrozais e os motoboys foram substituídos por vacas, bois e cavalos. Com o vento batendo forte contra o rosto, respirei.

O câncer chegou de repente, como todo câncer chega. De zero a cem em menos tempo que gostaríamos de acreditar. O ronco da dor era tão alto quanto o do escapamento. Olhei para o ponteiro: estava devagar. Forcei mais o motor e ouvi o urro mecânico. A paisagem começou a passar mais rápido, o vento enrijeceu os braços, da mesma forma como aqueles últimos 18 meses haviam enrijecido minha alma.

Eu não tenho mais idade pra parar de fumar, filho. Isso é coisa pra jovem que ainda tem alguma chance na vida. Agora só me resta esperar e agradecer todo dia a Deus pela vida boa que a gente levou juntos. O sol estava se escondendo atrás das nuvens. Eu sabia que iria encontrar chuva mais à frente. Quando me aproximei o suficiente, encostei e esperei que ela chegasse até a mim.

Engole esse choro, rapaz. Homem de verdade não chora, não. Você não quer ser um homem forte e corajoso assim que nem o papai? A dor logo passa. Esse é o primeiro machucado, mas vão vir muitos. Você deve se lembrar de uma coisa, meu filho: a gente sempre vai cair. O que importa é que a gente sempre se levante e tente de novo. Não adianta quantos machucados a gente fizer, de nada adianta ficar chorando. Mas eu chorava. Sentado na moto, de braços abertos, capacete no colo e rosto recebendo as gostas da chuva que já havia chegado, eu chorava.

A primeira moto do meu pai era uma Intruder. Igualzinha aquelas dos filmes.  E eu falava pra ele, sempre que ele chegava em casa e colocava o capacete na minha cabeça: um dia eu vou ter uma moto também, bem maior que essa, eu vou ter uma Harley Davidson!, eu dizia colocando o capacete.

Coloquei o capacete e olhei o emblema no tanque. PHD. Você nunca andou nela, pai. E nunca vai andar. E ela é tão linda, tão forte. Ela não chora, diferente de mim. Ela é que nem você pai. Ela é forte e vai onde ela bem entender. Ela também tem seus pontos fracos, como você tem os seus. Ela também bebe demais. Ela também tem um problema antigo com a fumaça. Mas ela pode até virar passado, pai, mas você é que é insubstituível.

Retornei para casa. Ela retornou pra casa.

Mas você, pai, você não retornou pra casa.

 

 

 

 

(texto publicado originalmente no Duelo de Escritores)

Sobre paus e pedras – Duelo de Escritores

As mulheres de Charles BukowskiOntem publiquei aqui um texto antigo do Fred a respeito do tema desta rodada do Duelo de Escritores.

Hoje, então, publico um trecho curto do texto que realmente escrevi para concorrer nesta rodada, também com o Fred, chamado “Sobre paus e pedras”:

Eu não sou um cara bonito. Longe disso. Ok, bem longe disso. Mas mesmo assim eu tenho um jeito com as mulheres. Um jeito, é. Como posso explicar? Eu como mulher pra caralho. É, eu também não sei bem ao certo porque. Como falei, não sou um cara bonito. Gostoso, se é que um cara que não seja viado possa falar essa palavra, eu também não sou. Não chego sequer a ser forte. Tudo bem, eu sei brigar e não tenho jeito de moça, o que já é um começo. Mas isso não explica o motivo de eu ter alguma chance com as mulheres.

Isso não é de ontem, é claro. Mas também não é algo que sempre aconteceu. Quando eu era garoto eu não pegava ninguém. Nem sequer conseguia beijar alguém, imagina só comer. Eu era uma garoto feio, baixinho e cabeçudo. Por isso, sempre tive problemas de auto-estima. E na boa, as garotas odeiam homens com problemas de auto-estima. Eles não são homens o suficiente para suas bocetinhas juvenis. Vagabundas.

Quer ler o resto? É só clicar aqui para entrar no Duelo de Escritores e conferir o texto completo. Aproveite para ler os outros participantes e votar no seu favorito com o tema flerte.

O dia que a montanha calou.

Os raios de luz machucaram seus olhos. Não era possível que estivesse acordando. Não era para ele estar acordado. Seu sono pesado deveria se esticar por pelo menos mais algumas semanas. Meses, até, a notar pela baixa temperatura no interior da caverna. Não era possível que tivesse acordado tão cedo. Algo estava errado.

Forçou a vista tentando fazer os olhos, desacostumados depois de tanto tempo sem enxergar, voltarem a focar com nitidez. Não conseguiu ver nada de diferente, mas percebeu que seus olhos lhe pregavam uma peça. Sentia um cheiro diferente no ar. Um cheiro que não pertencia à caverna, um cheiro que não fazia parte de leu lar. Um cheiro de carne humana.

Levantou-se num pulo e urrou. As paredes da caverna tremeram, mas ele não conseguia enxergar nada de diferente. Todos os seus pertences, todo o seu tesouro, continuavam ali, reunidos num canto escuro. Respirou fundo. Nunca tivera tanta certeza: alguém estava escondido dentro de sua caverna.

Fechou os olhos e tentou se concentrar nos sons. Nada. O cheiro era cada vez mais claro, porém. Abriu os olhos e caminhou vagarosamente, olhando em volta. Pensou ter visto algo se movimentando próximo ao fundo da caverna. Avançou lentamente, prestando atenção ao sons que o circundavam. O vento uivando alto lá fora, um canto de condor à distância, um tilintar de moedas dentro de uma sacola de pano. Virou-se com ferocidade na direção de onde ouviu o tilintar das moedas e avançou, insano, contra a parede.

A boca aberta salivava, o corpo vibrava com a expectativa, e os músculos o impulsionavam com toda a sua força na direção do nada. Era lá, podia sentir o cheiro de pessoas naquela direção. Quando ainda faltavam alguns metros para o final da caverna, sentiu um impacto forte contra sua cabeça. O corpo chocou-se, em seguida, contra a parede invisível que estava ali. Caiu de lado, tonto, e grunhiu de raiva.

O impacto, apesar de completamente sustentado pela barreira mágica, acabou com o disfarce do grupo que estava ali. Agora sim, ele podia ver os culpados por fazê-lo acordar prematuramente. Quatro pequenos seres o encaravam espantados. Antes que pudesse se levantar, o quarteto fugiu em disparada caverna afora. O urro foi muito mais forte desta vez. Ergueu o enorme corpo e perseguiu eles com toda a velocidade que conseguia desenvolver encolhido dentro da caverna.

Ao entrar em contato com o mundo exterior, seus olhos o cegaram com a claridade, que não via há meses. Urrou novamente, mas desta vez de dor, e fechou os olhos freando repentinamente. A velocidade impulsionou seu corpo metros à frente, e o chão sumiu abaixo de seus pés. Ainda de olhos fechados, abriu as enormes asas e as movimentou com força, erguendo seu corpo em direção ao céu. Abriu os olhos procurando pelos pequenos seres que tentavam roubar seu tesouro, e viu as próprias escamas vermelhas reluzirem com o sol forte que brilhava no topo da montanha.

Bateu as asas com vigor, sobrevoando em círculos, quando viu os pequenos homens correndo por uma trilha no meio da neve espessa que se acumulava no chão. Deu um rasante em direção ao grupo e pode reconhecer uma mulher e três homens, sendo um deles pequeno e atarracado – provavelmente um anão – e os outros altos e esguios.

O grupo se lançou ao chão no momento do impacto, esquivando-se das presas do enorme dragão vermelho que os atacava. O monstro fez o contorno uma centena de metros à frente e lançou-se novamente contra os fugitivos. Desta vez, no entanto, o grupo revidou. Um elfo, de pele alva como a neve e cabelos levemente azulados, prostrava-se de pé na frente do restante do grupo, com um arco longo empunhado. O dragão se aproximava e o elfo o mantinha na mira. Pouco menos de 200 metros separavam os rivais quando a flecha ganhou os ares.

O impacto o atingiu no rosto, fazendo com que perdesse o controle por um instante. Foi o suficiente para, desengonçado, perder-se em sua rota e atingir o chão coberto de neve há poucos mais de 10 metros de distância do grupo. Quando se levantava, flecha cravada abaixo do olho direito, viu o grupo avançando em sua direção. O corpulento anão tinha um brilho diferente em seus braços, um amarelo cintilava da altura dos ombros até as mãos. Com um movimento de braço na direção do dragão, um grande martelo de luz amarela se formou, sendo lançado contra a criatura que se levantava. A arma de luz explodiu contra seu peito, fazendo com que o monstro se erguesse nas patas traseiras à espera do próximo ataque.

O elfo atirou mais uma flecha, que ricocheteou nas escamas do dragão, sem lhe causar maiores danos. Enquanto a mulher entoava palavras numa língua a muito esquecida, um homem corpulento e alto corria na direção do dragão, bradando uma longa alabarda no ar.

Antes que pudesse ser atingido pelo enorme machado, porém, a criatura vermelha golpeou o corpo do homem com a cauda, lançando-o à distância. O corpo atingiu a neve fofa, mas logo se ergueu novamente. O anão, com os braços cobertos por um brilho ainda mais intenso, golpeou a perna do dragão, tentando derrubá-lo. O monstro era mais forte que imaginava e, com um chute, também o lançou à distância.

Quando se virou para abocanhar o anão caído, um raio atingiu seu corpo coberto por escamas, causando uma descarga elétrica que se espalhou por seus membros. Virou-se a tempo de ver a mulher reiniciar seu mantra, enquanto o elfo percebia que suas flechas eram ineficazes contra o corpo rígido do dragão. Apenas o rosto era livre das grandes escamas que o mantinha seguro.

A enorme besta avançou na direção dos dois – elfo e maga – que discutiam um ataque combinado, quando foi atingida pelo guerreiro, já de pé com sua alabarda. O golpe da grande arma fez um corte em sua perna, mas apenas superficialmente. O dragão virou-se para o homem, mas foi golpeado nas costas por mais um martelo mágico lançado pelo anão.

Quando virou-se para o novo atacante, expôs o pescoço a dupla que discutia metro à frente. Foi o suficiente para que o elfo liberasse o grito de “AGORA” e corresse na direção da fera. Antes que pudesse ver o que acontecia, três pares de tentáculos azulados saíram do chão para agarrar o pescoço do dragão vermelho. Os membros luminosos enrolaram-se no pescoço do animal, que se debatia tentando se livrar. Enquanto isso, os dois guerreiros o golpeavam pelos flancos. Com a cauda, conseguiu atingir o homem mais alto na cabeça, fazendo-o rolar alguns metros morro abaixo, desacordado.

Os tentáculos continuavam esmagando o pescoço do monstro, puxando-o cada vez mais para perto do solo. Quando sua cabeça estava quase tocando o chão, o elfo largou o arco longo no chão coberto de neve e correu na direção do inimigo, desembainhando a espada. Saltou alto e pousou exatamente sobre a cabeça do monstro, que já estava presa contra o chão. À distância, a maga utilizava todas as suas forças para sustentar a magia em funcionamento, mantendo o inimigo paralisado.

O elfo desferiu dois golpes certeiros contra um dos olhos do animal. Ele grunhiu de dor e se debateu no chão, ainda preso, enquanto uma explosão de sangue jorrava do rosto atingido. A mulher já quase não tinha forças, e iria soltar a besta a qualquer momento.

O anão se aproximou e gritou uma série de palavras desconexas, numa língua desconhecida pelo elfo. A luz que envolvia seus braços ganhou cada vez mais intensidade. O anão apontou os braços na direção do elfo e gritou, num misto de fúria, dor e devoção. Caiu de joelhos, já sem força, apagando os brilhos de seus braços.

O brilho, por sua vez, passou a cobrir todo o corpo do elfo. Vendo aquilo, sentiu uma força vinda dos Deuses e ficou de pé sobre a cabeça do monstro imobilizado. Apontou a lâmina da espada para baixo, mirou exatamente no meio do crânio do animal e gritou. Gritou com toda a força de seus pulmões enquanto golpeava para baixo.

Quando o elfo abriu os olhos, viu que a luz havia se dissipado. À sua direita, o anão sorria, agradecido. A mulher tentava se levantar, depois de um esgotamento quase total. O homem que rolara morro abaixo ainda demoraria algum tempo até acordar da pancada na cabeça. Recuperados, havia uma pilha imensurável de moedas douradas os esperando no fundo da caverna.

Após levarem todo o dinheiro que conseguissem carregar, chamariam o povo da vila. Seus ferimentos seriam curados, o dinheiro seria dividido, e seu feito seria cantado pelos bardos, geração após geração. E aquele dia seria lembrado para sempre como o dia que a montanha calou.

 

(texto publicado nesta rodada do Duelo de Escritores. Clique aqui para conhecer os outros concorrentes)

Rodada ampliada no Duelo de Escritores

O mês de fevereiro é menor do que os outros, e com apenas 28 dias a terceira rodada do mês sempre sofre com isso.

Por isso decidimos ampliar os prazos!

Ou seja, você pode escrever seu conto e enviar para a gente até o dia 6 de março, esse domingo.

O tema da rodada é bandido.

Escreva seu texto (pode ser conto, crônica, poema, letra de música…) e envie para participe@duelodeescritores.com

 

Para ver o que já foi postado, é só clicar aqui.

Os túneis secretos de Adolf Hitler

A águia de bronze tombada de lado em cima da mesa abarrotada de papeis demonstrava a gravidade da situação.

– Herr Führer und Reichskanzler, estamos cercados. A praça está tomada pela polícia e eles investirão contra as portas do teatro a qualquer momento.

O comandante falava sem fitar o homem que, em pé e sem dizer palavra, olhava janela afora. Só então, reparou na presença de outros oficiais, todos com a braçadeira vermelha amarrada junto ao braço e o quepe verde escuro sendo segurado abaixo da axila.

– Sente-se, comandante Endes. Está tudo sob controle. Seus homens estão preparados?

– Preparados? Mas são muitos, não temos como…

– Schweigen! – a voz do Führer irrompeu sala adentro.

O homem baixou os olhos e a cabeça com rapidez, evitando fitar a face do líder. Apertou o quepe com força junto ao corpo, enquanto apertava também os olhos, temendo as palavras que ouviria a seguir. Foi o silêncio, porém, que o respondeu. Nenhuma palavra foi dita pelo general máximo das tropas alemãs. Ao invés disso, um dos homens que até então se encontrava sentado num dos sofás da sala ampla levantou-se e explicou com a voz calma e grave.

– Reúna seus homens e aguarde por ordens. O mais importante é que ninguém tenha acesso ao führer. Esteja preparado para barrar qualquer tentativa de entrada no teatro, o restante está sob nossa responsabilidade. – disse em tom firme.

Assim que Endes deixou o escritório improvisado para receber o führer no Brasil, o homem voltou a falar, direcionando suas palavras a todos que estavam no aposento:

– Não devemos nos preocupar demasiadamente. O mais importante é a segurança do führer. Temos um automóvel esperando por ele anonimamente na Boulevard Wendeburg. Assim que estiver a salvo, todos voltaremos para cá, sem que ninguém saiba sequer que ele esteve em Blumenau.

– E como faremos isso? – o homem que perguntava tinha o sotaque alemão carregado e o peito ocupado por medalhas douradas em grande quantidade, ilustrando seu alto posto no exército nazista.

– Tudo já foi preparado para uma saída rápida e sem maiores interferências, herr Volles. Sairemos pelo Petterskanal e, enquanto um grupo armado defende a saída Norte junto ao rio, o restante de nós segue ao Sul, a caminho da residência de Rabe e Karman.

– E não encontraremos problemas no caminho?

– Fique tranquilo, general. Os túneis são seguros e foram construídos ainda muito antes da construção do teatro. Tudo para garantir a segurança e locomoção de nosso guia. Daqui, temos opções de acesso a educandários ecumênicos com apenas alguns poucos minutos de caminhada. Não há como sermos descobertos. Após a vitória retornaremos todos para cá, de onde o próprio führer poderá mobilizar nossos escritórios em toda a América Latina. Tivemos nossos melhores homens envolvidos diretamente neste projeto.

– Não seria mais prudente uma região mais afastada do acesso náutico?

– Este trecho do Itajaí Açu não é navegável por nada que possa nos preocupar. Serve apenas como escapatória através de barcos rápidos que possam nos levar até uma área navegável. Não seremos atacados por ele. No mais, além do escritório na beira do rio, já preparamos as terras para a construção da residência oficial em Hammônia, subindo o rio em direção de áreas mais seguras. Herr Eckner está encarregado de preparar os detalhes, mas não pode estar presente hoje.

– Eckner? Conde Zeppelin? Não confio nele.

– Preocupemo-nos com isto em outro momento, senhores. Precisamos deixar o prédio.

Como explicado pelo Coronel Antônio Lara, único brasileiro junto ao grupo e responsável pelas obras na Sociedade Teatral Frohsinn, os túneis eram amplos e estavam desertos. Em frente a cada uma das grandes portas que davam acesso aos subterrâneos, homens armados tinham ordens de defendê-los com a vida. Aparentemente, não havia com o que o líder se preocupar.

Durante todo o trajeto, o Führer não disse uma só palavra. Grunhia, apenas, enquanto observava as espessas e úmidas paredes de pedra que percorriam todo o trajeto. Costumava olhar para o chão, onde os coturnos negros dividiam lugar com algumas raras baratas e um fino fio de água que corria sentido norte, sumindo na escuridão.

Fizeram algumas curvas no túnel escuro, iluminados apenas pelas luzes das lamparinas que alguns dos oficiais carregavam. Após alguns minutos de caminhada, um grupo se separou, subindo as escadas de um colégio de padres para verificar a situação das ruas da cidade. O restante seguiu por entre os túneis largos e silenciosos. Não se ouvia o que acontecia na superfície. Apenas a respiração pesada dos oficiais do terceiro Reich eram audíveis.

Após cerca de 20 minutos de caminhada, que pareciam horas naquela situação, era possível ver a luz na distância. Um rapaz magro de pistola em punho aguardava o grupo que se aproximava. Falou algo num alemão precário e cheio de erros e virou-se para abrir a porta que estava sob sua proteção

O veículo tinha espaço para apenas quatro oficiais. O restante caminhou de volta ao teatro para finalmente mostrar que não havia ninguém a ser procurado em suas dependências. Os papeis e objetos com referências ao nazismo desapareceram em instantes e foram queimados nos dias seguintes.

As buscas foram intensas, mas nada foi encontrado. A vinda do führer do terceiro Reich ao Brasil ficou escondida em meio a boatos e histórias fantasiosas. Lendas urbanas que falavam sobre construções nazistas, tesouros alemães, túneis subterrâneos e suásticas escondidas.

Com a derrubada do império nazista, todos os oficiais atuantes no período da Segunda Guerra foram depostos e presos. A língua alemã foi proibida de ser falada nas ruas. Objetos nazistas foram queimados, louças quebradas e armas confiscadas. Os túneis foram selados com cimento.

Até hoje, a águia de bronze deita as asas no chão lamacento de algum lugar onde o sol nunca mais irá brilhar.

 

 

(este conto foi escrito originalmente para participação no Duelo de Escritores, onde foi o vencedor da rodada. O desafio era escrever sobre a minha própria cidade. Resolvi falar sobre ela através de uma das principais lendas ainda ativas por aqui: os túneis que cruzam o subterrâneo da cidade).

 

Visões da favela (ou a Favela Caracol)

– Ei, neguinha, pega minha carteira ali no criado-mudo.

– Já falei pra não me chamar assim, Laerte.

– Qualé, tá com vergonha da tua cor agora, neguinha?

– Não é isso. Só quem me chama assim é o meu homem, já falei.

– E eu lá tenho consideração por corno?

– Não fala assim que o Lázaro é um homem bom.

– Homem bom, sei. Lazarento, isso sim. Ao invés de estar aqui cuidando da mulher, tá lá entupindo o nariz de pó. Daí não sabe por que perde a mulher pra outro. Chifrudo de merda.

– Lázaro tá trabalhando pra fazer todo mundo melhorar de vida, Laerte. Não é um vagabundo que nem tu, que nem trabalho tem.

– Tá é apagando neguinho por aí. Cheirador de pó do caralho. Sabe como ele conseguiu tudo isso, sabe? Apagando o Auê.

– O Auê se meteu em confusão e tu sabe disso. E o Lázaro não tem nada a ver com isso.

– Ah, não tem. Olha, ele não aparecendo no meu caminho, tô de boa. Que se o puto descobre que tô te comendo, acordo na cova. O Lazarento me mete um furo no meio dos olhos! Tu pensa que ele tá lá fazendo ação humanitária? Ele tá é sumindo com todo mundo que olha o desgraçado nos olhos. Logo, logo, quem acorda na cova é ele.

O som de vidro quebrando interrompe a discussão que já se havia acalorado. O projétil, medindo pouco mais que um punho fechado, cuspia uma névoa branca pelo ar. Marluce caiu de joelhos, mãos junto ao rosto tentando interromper o ataque de tosse. Laerte correu em direção à porta dos fundos, passando pela cozinha. Apanhou a faca de cabo preto que deitava sobre a pia e deu um chute na porta, que se abriu com violência. Ouviu o grito “faca” e sentiu o impacto contra o peito.

O corpo, arremessado contra o chão pelas pernas enfraquecidas, bateu com força no piso gelado. A faca deslizou para junto do fogão e os olhos inertes fitaram o teto branco manchado de mofo.

(…)

– Qualé, maluco, tá me tirando? Tá me dizendo que tô de caô, agora?

– Chama o Boss de maluco não, rapá.

– Deixa, Foguinho. Deixa que com dedo-duro eu me entendo.

– Dedo-duro? Tu tá com merda na cabeça, maluco?

O ruivo deu um passo à frente, a semi-automática apontada para o rosto do sujeito negro que estava deitado no colchão. Laerte folheia as páginas de uma revista masculina que estava jogada no chão, calmamente.

– É o seguinte, Paulista… – fala sem tirar os olhos da morena de coxas grossas e sexo depilado – Se o que tu tá me falando é verdade, por que diabos tu não veio me contar isso até hoje?

– Só fiquei sabendo hoje, véi. Já tinha suspeitado, mas não quis falar besteira antes de ter certeza, porra.

– E quem te contou isso, Paulista? O pé de porco que te encontrou na hora do almoço lá na praça da Figueira?

O sujeito negro arregalou os olhos, mas logo virou o rosto. O suor brotava da testa avantajada e se acumulava abaixo do nariz redondo. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, o ruivo corpulento encostou a arma na testa do delator. O suor molhava o cano frio, enquanto o corpo do sujeito tremia, incontrolável.

– É o seguinte, Paulista. Eu vou lá pra minha casa como tu falou. Se Marluce estiver sozinha, tu morre. Se Marluce não estiver em casa, tu morre. Se tu tentar deixar o morro, tu morre.

– M-mas…

– Agora, – falou interrompendo o interlocutor – se o Laerte estiver lá com a minha mulher, quem morre é ele. E tu se safa, preto safado.

Os dois negros deixaram o barraco e ganharam as ruas, armas em punho e camisetas regatas jogadas por sobre o ombro. Os calções de futebol guardavam volumes nos bolsos, e se penduravam abaixo da linha da cintura, mostrando alguns pelos pubianos. Lázaro coça o saco, puxa o catarro e acerta o cuspe no poste à sua frente, à meia altura. Olha para o companheiro e abana a cabeça negativamente.

– Isso vai dar merda, Foguinho. Vai dar merda.

(…)

– Vai, vai, vai! Peixoto e Oliveira, cobertura. Amorim, tu e o Carvalho vão pela rua do lado. E cuidado pra não chamar a atenção. Ao meu sinal, eu quero todo mundo dentro daquela porra daquele moquifo. Vamos limpar esse filho da puta pra fora desse planeta.

O grupo de homens encapuzados se aproximava do casebre. Armas em punho, os capuzes e os óculos escuros escondiam a identidade dos justiceiros. A roupa da força especial da polícia carioca não trazia nomes ou símbolos de grupos, apenas o velcro esperando por algo que se prendesse a ele, dando identidade ao seu corpo sem nome.

– O ruivo disse que o Lázaro ia estar aqui exatamente às três.

– Porra, faltam quinze minutos ainda.

– A gente espera?

– Não, que merda, não tem tempo pra isso não. Vamos limpar esse filha da puta e sumir daqui o mais rápido possível. Peixoto, faz sinal pro Amorim se aproximar e ver se tem alguém na casa.

O homem que se escondia apoiado no muro corre alguns metros, cabeça abaixada, até chegar no campo de visão dos outros dois homens que esperavam ansiosos na rua lateral. Fez um movimento com as mãos, sem dizer palavra, e voltou correndo para junto dos outros. Amorim pulou o muro pichado e se aproximou, passos lentos, da janela. Dois vultos se mexiam energicamente no escuro do barraco.

– Qualé, tá com vergonha da tua cor agora, neguinha?

– Não é isso. Só quem me chama assim é o meu homem, já falei.

– E eu lá tenho consideração por corno?

Amorim corre de volta para o muro e faz sinal afirmativo para Carvalho, que repete o sinal para Peixoto. O grupo se prepara para agir. Capitão Jesus, como era conhecido o chefe do grupo, tirou a faca e marcou um X junto à parede do casebre, demarcando tradicionalmente a passagem do temido Esquadrão da Morte pelo local.

Bombas de gás lacrimogêneo romperam os vidros do quarto onde o casal discutia. Enquanto a mulher tombava no chão, sufocada pelo gás, o alvo do ataque fugia pela porta dos fundos.

– Faca! – gritou Amorim.

Carvalho não pensou duas vezes antes de puxar o gatilho. A bala atravessou o peito do bandido, que caiu no chão, imóvel. Carvalho se aproximou e disparou mais uma vez a arma, desta vez contra o crânio da vítima. Capitão Jesus chegou, acompanhado pelo cabo Oliveira, apenas para ver que o rosto não era o de Lázaro, líder do tráfico da favela Caracol.

– Fodeu, vamos sair daqui.

Na manhã seguinte, nenhuma palavra foi pronunciada pelos jornais a respeito da morte de Laerte Augusto de Farias, 28 anos. Luiz Gabriel Castelo Junior, o popular Paulista, amanheceu morto na mesma vala que Laerte. Apenas por via das dúvidas.

(o texto em questão foi escrito para o site Duelo de Escritores)

Pau rosa

É infecção, disse o doutor. Porra, infecção? No pau? É muita merda junta. Só me faltava essa. O pior é que arde. E coça. Duvido eu conseguir comer alguém com o pau rosa desse jeito. Eu tinha que dar um jeito. Nem fodendo que vou ficar duas semanas sem dar uma só por causa de um pau rosa. Tenho que dar um jeito. Talvez no escuro, sem acender a luz, a mina nem perceba. Mas o pior é que essa merda tá fedendo. Duvido que alguém vá aceitar colocar isso na boca. Quer dizer, a Cacá coloca qualquer coisa na boca. Mas tô fora, se bobear foi da Cacá que eu peguei essa porra dessa infecção. Melhor não arriscar. Argh, saco, não para de coçar. O doutor disse que não pode coçar, que senão espalha. E só me faltava, além de ter o pau rosa, ter o saco rosa também. Tá queimando, demônio. Imagina se isso piora. Não, não tem como ficar pior que isso. Só se meu pau cair. Imagina só, o pau cair. Que coisa bizarra. Um cara sem pau ia viver como? Absurdo! Como será que faz pra mijar? E não vai comer mais ninguém. Capaz do cara ter que virar viado só porque o pau caiu. Ah, mas pau não cai assim não. E aquela mulher que cortou o pau do ex-namorado fora porque descobriu que ele tava chifrando ela? Foda. Imagina só o cara acordar e ver que não tem pau. Acho que eu me matava. Foda, me matava mesmo. Pára de doer, desgraça. Já sei, vou pegar aquela bolsa que o doutor mandou colocar pra gelar o pau. Isso, tá aqui. Tá, que merda é essa? Nem é gelado. Ah, bosta, tem que colocar no freezer. Tá, e agora? Já sei, vou tomar aqueles remédios pra infecção. Diz o doutor que é forte, vai dar resultado. Vamos ver, cadê aquelas pílulas? Porra, onde eu coloquei. Jurava que tava no sofá. Cadê? Olha, achei 10 centavos. Hum, merda, cadê? Achei! Tá escrito que é pra tomar de noite, antes de dormir. Hum… são cinco horas. Isso é quase noite. É acho que vale. Vou aproveitar e tomar duas pra ter certeza que vai fazer efeito. Melhor tomar três. Ok, quatro e não se fala mais nisso. Caralho, pílula gigante. Como vou engolir essa merda? Já sei, cerveja. Boa, campeão. Ahhh, delícia! Nada como uma cerveja gelada e uma mão cheia de pílulas. Ei, cerveja gelada? Hum. Ahhh… agora assim, quem precisa de bolsa térmica? Esse geladinho no saco até que é bom. Ei, rapaz, tá vivo, é? Tá rosa, mas não morreu! Ai, caralho, tá ardendo. Cacete, cacete! Para de crescer, porra, tá ardendo. Gelado, gelado… Isso lá é hora de ficar de pau duro?

 

(texto concorrendo nessa rodada do Duelo de Escritores).

Ame, sofra, viva

Por Fábio Ricardo e Marina Melz

Tem gente que diz que só os relacionamentos doces valem a pena. Outros, que só se consegue sentir o amargo. Eu prefiro dizer que todos os relacionamentos valem a pena. Por mais doces ou amargos que eles sejam.

Não importam sofrimentos, de nada vale temer o futuro. O flutuar é agora. O desmontar com um sorriso, também. Temer o futuro pra quê? Se por mais que você se segure, você sabe que uma hora vai cair? Você pode cair logo nos primeiros dias, braços abertos e vento no rosto, ou pode se segurar, espernear e dizer que não quer se apaixonar. Mas uma hora você vai escorregar e cair do mesmo jeito. A única decisão é como você pretende apreciar a queda.

A queda sempre é queda. É você quem escolhe aproveitar os segundos de queda-livre ou tentar prever a dor. Amar sem medo ou sofrer por antecipação. Se for para sofrer, sofra. Você vai sofrer de qualquer jeito, esteja certo disso. Todo relacionamento traz sofrimentos consigo. Seja pelo medo de se entregar, seja por se entregar demais. Quem não sofre, não ama.

Quando o momento de sofrer chegar, você vai sorrir. Amarelo, tímido, infeliz. Mas se você realmente tiver vivido o momento de tirar os pés do chão, você vai sorrir.

Você pode passar anos sofrendo para no final ficar feliz. Ou você pode ficar feliz por anos, e no final sofrer. Tanto faz. É certo que você vai sofrer. E também é certo que você vai ser feliz. A felicidade precisa do sofrimento para existir, ou então você não saberia que ela é felicidade. Então aproveite e sofra. Afinal, você vai ser muito feliz.

Aproveite cada beijo como se fosse o último, sinta cada abraço como se fosse só o começo e sorria por um sorriso. Sinta o agridoce da vida oscilando na sua boca e no seu peito. Se você fizer isso, não importa o quanto foi amado, ou por quanto tempo. O que importa é que você se entregou, se apaixonou, flutuou. O que importa é que você se entregou. E não há sensação no mundo melhor do que a de se entregar a uma paixão.

Você sempre pode escolher entre fugir e se entregar. Não seja covarde. Se entregue a cada nova possibilidade. Fique cego, surdo. Voe, esqueça o chão. Perca o juízo, a fome, o sono. Perca a consciência. Se perca. Se perca pra se encontrar.

Se encontre.

 

Explicando o texto: Ordens são ordens

Como havia dito no posto anterior, publico aqui o meu texto que está concorrendo nessa rodada do Duelo de Escritores. Depois dele, meus comentários a respeito:

Ordens são Ordens

por Fábio Ricardo, para o Duelo de Escritores, em 13 de maio de 2010

O brutamontes chegou em frente à porta fechada, deu duas batidas leves na madeira e ouviu o tradicional “entra!”, com o sotaque carregado na voz rouca do chefe. Abriu a porta e entrou com alguma dificuldade. Os ombros rasparam nas duas beiradas do vão da porta, e ele encolheu o pescoço, desviando a testa da parte superior. Encontrou o sujeito gordo e baixo fumando um cigarro atrás de pilhas de papel envelhecido.

– Fala chefe. Mandou me chamar?

– Senta aí.

Olhou para a pequena cadeira de encostos altos para os braços, colocada no meio da sala. Sentiu um nó na garganta. Nunca conseguiria colocar seu quadril largo entre aqueles braços.

– Er… chefe?

Apenas com os olhos, informou a situação constrangedora ao sujeito gordo, que já se levantava de sua cadeira e caminhava em direção ao bar, na parede leste do escritório.

– Tudo bem. Uísque?

Perguntou já servindo dois copos baixos. No seu, colocou cerca de dois dedos a mais de bebida do que no do empregado. Questão de hierarquia. Segurou os dois copos com a mesma mão, enquanto com a outra segurava o cigarro entre o terceiro e o quarto dedo. Entregou o copo ao sujeito em pé no meio da sala e sentou-se na quina da mesa, fazendo com que o paletó se abrisse e mostrasse a barriga gorda que se sobressaía mesmo por dentro da calça de cintura alta.

– É o seguinte, tenho um trabalho pra você.

– Pode dizer, chefe.

– É pra apagar alguém.

A sala ficou em silêncio. A resposta do chefe foi rápida e sem meias-palavras. Ele costumava ser assim, direto ao ponto, e responder as perguntas antes mesmo do interlocutor terminar de falar. Deu mais uma baforada no cigarro, sem soltar a fumaça. Ficou segurando ela em seu pulmão pelo que pareceu uma década. O empregado não tirava os olhos da ponta do cigarro, onde as cinzas eriçavam-se sem cair no tapete de gosto duvidoso. Antes de soltar a fumaça, o chefe ainda deu um gole no uísque.

– E tem que ser congelado.

Soltou a fumaça e voltou para trás da mesa. Sentou-se, coçando com força a virilha direita. Apoiou o copo de uísque em cima de alguns documentos e olhou pra frente.

– Estamos conversados?

A pergunta pegou o grandalhão de surpresa. Como assim conversados? Ele ainda nem sabia o que estava acontecendo! Esperava que o chefe entrasse em detalhes, em explicações sobre quem, como, onde. Entregaria uma pasta marrom cheia de fotos, contas de luz com endereços, um resumo das atividades diárias do sujeito. Mas nada. Não disse nada.

– Er… chefe?

– Sim?

– Como assim?

– Como assim o quê, rapaz?

– É que… é para apagar o cara, né? Certo…

– Congelado.

– Isso, isso, congelado.

– Então. Qual o problema?

– Chefe. Apagar quem?

– Como?

– O senhor disse para apagar alguém…

– Congelado.

– É, é, apagar alguém congelado…

– Isso mesmo.

– Certo… mas quem?

– Alguém, ué.

– Mas… qualquer um?

– Isso. Qualquer um.

Como o grandalhão não dava sinais de ter captado a mensagem, o sujeito gordo se levantou num movimento rápido, virou o resto do uísque para dentro da garganta e contornou a mesa, se colocando ao lado do empregado, chegando apenas à altura de seu ombro, no máximo. Caminhou em círculos em volta dele, gesticulando o cigarro enquanto falava olhando para o chão.

– Olha, você trabalha comigo há bastante tempo, não trabalha?

– Trabalho sim senhor. Mais de 10 anos.

– E seu pai trabalhou comigo bastante tempo, não trabalhou?

– A vida inteira dele, chefe.

– Então você já sabe como as coisas aqui funcionam. Vocês recebem ordens, eu recebo ordens. Quem manda as ordens, não interessa. São ordens, e a gente cumpre. Você entende?

– Entendo sim senhor.

– E quando recebemos ordens, nós ganhamos dinheiro. Eu podia ser livre como um passarinho, viver a vida sem aceitar ordens de ninguém. Você também. Como um passarinho, como uma borboleta. Você gosta de borboletas?

– Er… acho que gosto sim.

– Acha que gosta?

– Gosto! Gosto sim senhor!

– Você queria ser livre como uma borboleta, não queria?

– Queria sim senhor.

O chefe, antes mesmo de o grandalhão terminar a frase envergonhada, lançou o copo vazio de uísque contra a parede numa fúria que pegou o empregado de surpresa.

– E quem vai pagar a porra do salário da borboleta? Hein? Hein? Me diz, seu merda. Vai voar que nem uma borboleta, vai! Vai voar que nem uma porra de uma borboleta! A borboleta vai pagar a escola particular das suas crianças? A porra da borboleta tem dinheiro para pagar o aluguel da casa bonita onde você mora com a sua esposa? Vai lá, pergunta para a sua esposa se ela quer viver embaixo da ponte e morrer de fome COM UMA PORRA DE UMA BORBOLETA!

O brutamontes segurava a respiração e protegia o pescoço largo entre os ombros. Não tinha coragem de olhar para o chefe.

– Seguinte, rapaz. Eu recebo ordens e passo elas adiante. Da mesma forma, eu recebo dinheiro e passo ele adiante. Se você quiser ser livre como uma borboleta, pode ir. Se você quiser sua casa, seu carro, seu jantar na mesa e a escola dos seus filhos, eu terei um presunto congelado até esse domingo. Te dou até dia 16. Não interessa quem, não interessa onde. Alguém tem que morrer congelado. Só isso.

Caminhou até a escrivaninha e apanhou o cachecol e o chapéu. Deixou a sala sem olhar para trás e sem fechar a porta. Antes mesmo do domingo chegar, era plena quinta-feira, os jornais estampavam o corpo encontrado congelado dentro de um frigorífico no centro da cidade. Sem documentos, sem história, sem pistas. Um personagem sem background. Apenas um homem que morreu. Congelado.

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Ok, vamos a alguns comentários.

Primeiramente, acho que ficou meio óbvio a todos a intenção de brincar com o próprio Duelo de Escritores, de escrever sobre as dores de escrever. A parte mais clara disso tudo é quando coloco a data final de postagem da atual rodada da competição, inclusive dizendo o dia em que publiquei meu texto, assumindo assim a persona do empregado.

Pois bem, tirando esses detalhes de data, que foram colocados justamente para que se pudesse fazer uma ligação bem direta com o Duelo, vamos tentar abrir um pouco mais o campo de visão destas entrelinhas. Se ao invés do Duelo de Escritores, pensarmos na crítica se mantendo a todo o universo editorial da literatura comercial?

O texto quer falar sobre essas posições definidas pelo mercado, sobre a relação de poder que envolve os escritores e as editoras que lançam seus livros. Até que ponto os escritores têm a liberdade total para viver sua arte, escrever livremente? Ou será que eles acabam entrando numa espiral comercial-literária, onde o dinheiro guia também a sua literatura?

Observando os personagens, podemos ver que a forma caricata de se mostrar cada um é proposital: o escritor é o empregado. Enorme e forte (em seu potencial e suas qualidades), precisa se encolher e espremer para caber nas expectativas de seu editor.

O editor, por outro lado, é um sujeito ranzinza e controlador, mais preocupado em se manter no topo da cadeia alimentar do que em realmente produzir um material de qualidade. Se o que dá dinheiro é a produção de um tema X, é sobre esse tema que ele fará o escritor escrever.

O momento em que se cita o passado do empregado, falando sobre os anos de casa e a vida de seu pai fazendo o mesmo, é uma forma de ver os ídolos e a forma como seguimos os caminhos deles. Queremos um grande editor porque ele já lançou gente que respeitamos muito, e queremos seguir seus passos. Para isso, muitas vezes, somos obrigados a deixar de lado um pouco daquele estilo sonhador de se fazer arte.

A porta e a cadeira são apenas para mostrar algumas dessas adequações do escritor para com o editor. A forma de tratamento do chefe com o empregado é clara: você pode ser livre, mas não vai ganhar dinheiro com isso. Você tem talento e sabe disso, senão não estaria trabalhando comigo, mas mesmo assim, tanto eu como você precisamos de dinheiro. Então desista de seus sonhos e simplemente escreva sobre o que vende mais.

O tema morrer congelado, que na realidade quem escolheu foi minha namorada num dia muito frio, veio bem a calhar. O frio representa a melancolia, que muitos escritores já trabalharam com perfeição na história. A morte é o que chama o leitor, é o ponto de atração. Se a ordem fosse “escreva um texto com um vampiro teenager“, seria muito óbvio. A violência funcionou melhor para o caso.

E para encerrar: o personagem morto, sem background, sem história. Muitos podem ter traduzido simplesmente como a pressa em se publicar um texto no Duelo. Eu só reparei nessa tradução depois de já ter postado. A ideia era criticar os livros sem profundidade, que vêm simplesmente para agradar os leitores.

No caso “Crepúsculo”, que citei agora há pouco, podemos ver um pouco disso. O personagem aparenta uma superficialidade grave (que eu posso estar errado, já que não li o livro, apenas vi o filme e li uma série de artigos sobre a obra escrita). Um vampiro que pode andar no sol, que se tornou “vegetariano”… falta profundidade de personagem e de história. Vale lembrar que em Entrevista com o Vampiro, já temos o caso do vampiro que não se alimenta de humanos, só animais. Mas com uma profundidade de arrepiar.

Mas então, é isso. Foi basicamente um texto crítico (até de forma exagerada, pois não conheço a fundo o mercado editorial) da relação doescritor com o mercado.

Publiquei isso aqui com medo de “explicar a piada”. Mas como a votação do Duelo já está encaminhada à vitória do JLM, me dei essa liberdade, apenas para aumentar a intensidade da discussão literária que fazemos no Duelo de Escritores.