Como havia dito no posto anterior, publico aqui o meu texto que está concorrendo nessa rodada do Duelo de Escritores. Depois dele, meus comentários a respeito:
Ordens são Ordens
por Fábio Ricardo, para o Duelo de Escritores, em 13 de maio de 2010
O brutamontes chegou em frente à porta fechada, deu duas batidas leves na madeira e ouviu o tradicional “entra!”, com o sotaque carregado na voz rouca do chefe. Abriu a porta e entrou com alguma dificuldade. Os ombros rasparam nas duas beiradas do vão da porta, e ele encolheu o pescoço, desviando a testa da parte superior. Encontrou o sujeito gordo e baixo fumando um cigarro atrás de pilhas de papel envelhecido.
– Fala chefe. Mandou me chamar?
– Senta aí.
Olhou para a pequena cadeira de encostos altos para os braços, colocada no meio da sala. Sentiu um nó na garganta. Nunca conseguiria colocar seu quadril largo entre aqueles braços.
– Er… chefe?
Apenas com os olhos, informou a situação constrangedora ao sujeito gordo, que já se levantava de sua cadeira e caminhava em direção ao bar, na parede leste do escritório.
– Tudo bem. Uísque?
Perguntou já servindo dois copos baixos. No seu, colocou cerca de dois dedos a mais de bebida do que no do empregado. Questão de hierarquia. Segurou os dois copos com a mesma mão, enquanto com a outra segurava o cigarro entre o terceiro e o quarto dedo. Entregou o copo ao sujeito em pé no meio da sala e sentou-se na quina da mesa, fazendo com que o paletó se abrisse e mostrasse a barriga gorda que se sobressaía mesmo por dentro da calça de cintura alta.
– É o seguinte, tenho um trabalho pra você.
– Pode dizer, chefe.
– É pra apagar alguém.
A sala ficou em silêncio. A resposta do chefe foi rápida e sem meias-palavras. Ele costumava ser assim, direto ao ponto, e responder as perguntas antes mesmo do interlocutor terminar de falar. Deu mais uma baforada no cigarro, sem soltar a fumaça. Ficou segurando ela em seu pulmão pelo que pareceu uma década. O empregado não tirava os olhos da ponta do cigarro, onde as cinzas eriçavam-se sem cair no tapete de gosto duvidoso. Antes de soltar a fumaça, o chefe ainda deu um gole no uísque.
– E tem que ser congelado.
Soltou a fumaça e voltou para trás da mesa. Sentou-se, coçando com força a virilha direita. Apoiou o copo de uísque em cima de alguns documentos e olhou pra frente.
– Estamos conversados?
A pergunta pegou o grandalhão de surpresa. Como assim conversados? Ele ainda nem sabia o que estava acontecendo! Esperava que o chefe entrasse em detalhes, em explicações sobre quem, como, onde. Entregaria uma pasta marrom cheia de fotos, contas de luz com endereços, um resumo das atividades diárias do sujeito. Mas nada. Não disse nada.
– Er… chefe?
– Sim?
– Como assim?
– Como assim o quê, rapaz?
– É que… é para apagar o cara, né? Certo…
– Congelado.
– Isso, isso, congelado.
– Então. Qual o problema?
– Chefe. Apagar quem?
– Como?
– O senhor disse para apagar alguém…
– Congelado.
– É, é, apagar alguém congelado…
– Isso mesmo.
– Certo… mas quem?
– Alguém, ué.
– Mas… qualquer um?
– Isso. Qualquer um.
Como o grandalhão não dava sinais de ter captado a mensagem, o sujeito gordo se levantou num movimento rápido, virou o resto do uísque para dentro da garganta e contornou a mesa, se colocando ao lado do empregado, chegando apenas à altura de seu ombro, no máximo. Caminhou em círculos em volta dele, gesticulando o cigarro enquanto falava olhando para o chão.
– Olha, você trabalha comigo há bastante tempo, não trabalha?
– Trabalho sim senhor. Mais de 10 anos.
– E seu pai trabalhou comigo bastante tempo, não trabalhou?
– A vida inteira dele, chefe.
– Então você já sabe como as coisas aqui funcionam. Vocês recebem ordens, eu recebo ordens. Quem manda as ordens, não interessa. São ordens, e a gente cumpre. Você entende?
– Entendo sim senhor.
– E quando recebemos ordens, nós ganhamos dinheiro. Eu podia ser livre como um passarinho, viver a vida sem aceitar ordens de ninguém. Você também. Como um passarinho, como uma borboleta. Você gosta de borboletas?
– Er… acho que gosto sim.
– Acha que gosta?
– Gosto! Gosto sim senhor!
– Você queria ser livre como uma borboleta, não queria?
– Queria sim senhor.
O chefe, antes mesmo de o grandalhão terminar a frase envergonhada, lançou o copo vazio de uísque contra a parede numa fúria que pegou o empregado de surpresa.
– E quem vai pagar a porra do salário da borboleta? Hein? Hein? Me diz, seu merda. Vai voar que nem uma borboleta, vai! Vai voar que nem uma porra de uma borboleta! A borboleta vai pagar a escola particular das suas crianças? A porra da borboleta tem dinheiro para pagar o aluguel da casa bonita onde você mora com a sua esposa? Vai lá, pergunta para a sua esposa se ela quer viver embaixo da ponte e morrer de fome COM UMA PORRA DE UMA BORBOLETA!
O brutamontes segurava a respiração e protegia o pescoço largo entre os ombros. Não tinha coragem de olhar para o chefe.
– Seguinte, rapaz. Eu recebo ordens e passo elas adiante. Da mesma forma, eu recebo dinheiro e passo ele adiante. Se você quiser ser livre como uma borboleta, pode ir. Se você quiser sua casa, seu carro, seu jantar na mesa e a escola dos seus filhos, eu terei um presunto congelado até esse domingo. Te dou até dia 16. Não interessa quem, não interessa onde. Alguém tem que morrer congelado. Só isso.
Caminhou até a escrivaninha e apanhou o cachecol e o chapéu. Deixou a sala sem olhar para trás e sem fechar a porta. Antes mesmo do domingo chegar, era plena quinta-feira, os jornais estampavam o corpo encontrado congelado dentro de um frigorífico no centro da cidade. Sem documentos, sem história, sem pistas. Um personagem sem background. Apenas um homem que morreu. Congelado.
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Ok, vamos a alguns comentários.
Primeiramente, acho que ficou meio óbvio a todos a intenção de brincar com o próprio Duelo de Escritores, de escrever sobre as dores de escrever. A parte mais clara disso tudo é quando coloco a data final de postagem da atual rodada da competição, inclusive dizendo o dia em que publiquei meu texto, assumindo assim a persona do empregado.
Pois bem, tirando esses detalhes de data, que foram colocados justamente para que se pudesse fazer uma ligação bem direta com o Duelo, vamos tentar abrir um pouco mais o campo de visão destas entrelinhas. Se ao invés do Duelo de Escritores, pensarmos na crítica se mantendo a todo o universo editorial da literatura comercial?
O texto quer falar sobre essas posições definidas pelo mercado, sobre a relação de poder que envolve os escritores e as editoras que lançam seus livros. Até que ponto os escritores têm a liberdade total para viver sua arte, escrever livremente? Ou será que eles acabam entrando numa espiral comercial-literária, onde o dinheiro guia também a sua literatura?
Observando os personagens, podemos ver que a forma caricata de se mostrar cada um é proposital: o escritor é o empregado. Enorme e forte (em seu potencial e suas qualidades), precisa se encolher e espremer para caber nas expectativas de seu editor.
O editor, por outro lado, é um sujeito ranzinza e controlador, mais preocupado em se manter no topo da cadeia alimentar do que em realmente produzir um material de qualidade. Se o que dá dinheiro é a produção de um tema X, é sobre esse tema que ele fará o escritor escrever.
O momento em que se cita o passado do empregado, falando sobre os anos de casa e a vida de seu pai fazendo o mesmo, é uma forma de ver os ídolos e a forma como seguimos os caminhos deles. Queremos um grande editor porque ele já lançou gente que respeitamos muito, e queremos seguir seus passos. Para isso, muitas vezes, somos obrigados a deixar de lado um pouco daquele estilo sonhador de se fazer arte.
A porta e a cadeira são apenas para mostrar algumas dessas adequações do escritor para com o editor. A forma de tratamento do chefe com o empregado é clara: você pode ser livre, mas não vai ganhar dinheiro com isso. Você tem talento e sabe disso, senão não estaria trabalhando comigo, mas mesmo assim, tanto eu como você precisamos de dinheiro. Então desista de seus sonhos e simplemente escreva sobre o que vende mais.
O tema morrer congelado, que na realidade quem escolheu foi minha namorada num dia muito frio, veio bem a calhar. O frio representa a melancolia, que muitos escritores já trabalharam com perfeição na história. A morte é o que chama o leitor, é o ponto de atração. Se a ordem fosse “escreva um texto com um vampiro teenager“, seria muito óbvio. A violência funcionou melhor para o caso.
E para encerrar: o personagem morto, sem background, sem história. Muitos podem ter traduzido simplesmente como a pressa em se publicar um texto no Duelo. Eu só reparei nessa tradução depois de já ter postado. A ideia era criticar os livros sem profundidade, que vêm simplesmente para agradar os leitores.
No caso “Crepúsculo”, que citei agora há pouco, podemos ver um pouco disso. O personagem aparenta uma superficialidade grave (que eu posso estar errado, já que não li o livro, apenas vi o filme e li uma série de artigos sobre a obra escrita). Um vampiro que pode andar no sol, que se tornou “vegetariano”… falta profundidade de personagem e de história. Vale lembrar que em Entrevista com o Vampiro, já temos o caso do vampiro que não se alimenta de humanos, só animais. Mas com uma profundidade de arrepiar.
Mas então, é isso. Foi basicamente um texto crítico (até de forma exagerada, pois não conheço a fundo o mercado editorial) da relação doescritor com o mercado.
Publiquei isso aqui com medo de “explicar a piada”. Mas como a votação do Duelo já está encaminhada à vitória do JLM, me dei essa liberdade, apenas para aumentar a intensidade da discussão literária que fazemos no Duelo de Escritores.